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Ditadura ao sugo



crédito da foto: Stockimages

Por Leo Raoni

Um típico almoço de domingo na casa dos avós. Toda a família reunida ao redor da mesa, compartilhando de bons momentos, da bela macarronada da vovó, do choro do neto recém-nascido, da correria incessante das crianças e da gritaria dos adultos, competindo quem fala mais alto. Bocas cheias, cabeças vazias, goles e mais goles de refrigerante, cerveja e perdigotos.

Copos, pratos e talheres usados. Mesa grande, toalha limpa e no meio desse pandemônio , a figura patriarcal da família. Pai para uns, sogro para outros, e avô para alguns. A figura intocável e de respeito na base familiar continua lá : um exemplo para todos presentes.

Um típico almoço de domingo na casa dos avós. O avô, aquela figura imponente e inatingível a todos, tem o olhar perdido no horizonte. As rugas das mãos,  pés de galinha  e dores no ciático denunciam a idade avançada. Aquele que um dia correu a passos largos, agora caminha lento.  A velhice chega para todos e quando ela vem, traz consigo todo o passado, toda a lembrança,  seus atos e consequências do que um dia alguém fez quando jovem.

O avô do almoço de domingo pensa em sua juventude. Pensa nas horas em que passou no colégio,  as namoradinhas e o seu primeiro emprego. Pensa nas amizades feitas e sonhos perdidos . Pensa como tudo isso passou rápido demais. Pensa no que fez bom e no que fez de ruim, as pessoas que prejudicou e as pessoas que ajudou. Pensa nas glórias que recebeu de gente amiga e também na consciência que pesou perante seus atos. Tudo isso vêm a sua cabeça, como uma pancada. Uma pancada que muitas vezes deu em outras pessoas. Uma pancada que deu com tanta força e crueldade que até hoje dói,  não nos outros em que bateu, mas em si. Uma pancada na sua história, na história dos outros, na história propriamente dita.


O avô do almoço de domingo pensa em tudo isso.  Pensa em quantos almoços de domingos dos outros não tornou mais tristes por seus atos. Quantas famílias passaram os domingos sem entes queridos.  Quantos pratos, talheres e copos deixaram de ser postos à mesa. Quantas crianças chorando. Pensa na correria incessante nos corredores para interrogatório. Na gritaria dos adultos competindo  quem pode mais na hora da surra. Cabeças cheias de ideias e bocas vazias, rastros e mais rastros de sangue no chão.

Aquele que um dia levantou a mão para bater, já não consegue levantar a mão para colocar uma simples camisa.  

O avô do almoço de domingo vê a tolice cometida nos  áureos tempos. Quanta energia, quanta verve desperdiçada, quanta inflamação nos ares e discursos vazios. A utilidade brutal de sua existência  no complexo sistema repressor tinha apenas um comando : punir. Punir a todos. Punir a si.

O avô do almoço de domingo se puniu. Puniu  secretamente a sua família. Puniu punindo os outros.  Achava certo, sob um ponto de vista, todo aquela exasperação e terror. Achava justo.

Achava.

Hoje, ele é um avô do almoço de domingo. Respeitado por todos da sua base familiar. Exemplo para todos os presentes, mas não exemplo para si. Ele sabe de tudo o que fez e ficou no passado. Sabe que se calou na hora de falar, continuou na hora de parar, agiu ao invés de pensar. Sabe do legado vergonhoso que deixa para seus predecessores  e tenta esconder, não para preservar sua imagem, mas de sua própria família.

Quantos avôs de almoço de domingo não se encontram na mesma situação? Quantas mentes inquietas e velhas não estão procurando uma forma de redenção de todos os atos cometidos? Quantos ainda não acharam o caminho do bom senso e pensam ainda estarem certos de tudo aquilo que foi dito, feito, refeito e autorizado pelo Estado?

Só o tempo irá dizer o que serão desses avôs. O passado será ponte para o que construiremos no futuro.

Bom almoço de domingo a todos.