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ENTREVISTA

“Começaria tudo outra vez, se preciso fosse”

Alípio Freire diz sentir desprezo pelos torturadores 


Por Michelle Galvão


O ex-político Alípio Freire, jornalista, escritor, 66 anos, é baiano, mas mora em São Paulo. Alípio Freire começou cedo no movimento secundarista, militando na oposição sindical dos jornalistas na Ala Vermelha. Não admite ser visto como vítima ou herói de sua geração. Além disso, não culpa os jovens de hoje pela apatia política. Mesmo tendo lutado para resgatar a democracia e instalar o socialismo no Brasil  diz: "nós somos as possibilidade do nosso tempo". Foi preso aos 23 anos pelo Dops e foi transferido para o Presídio Tiradentes, que abrigou presos políticos durante a Era Vargas e o regime militar. Após a prisão, Freire retomou o jornalismo e continuou na militância, atuando inclusive na fundação do PT. Anistiado, ele recebe indenização do Ministério da Justiça desde 2005. "No presídio alguns torturadores diziam que tinham vencido a guerra, mas eu dizia que era só uma batalha”. Alípio diz: “Na verdade, eu sinto certo desprezo aos torturadores, eu gostaria que eles estivessem vivos hoje para perguntar quem realmente ganhou. Eu posso contar para os meus filhos e netos, com muito orgulho e muita honra, o que vivi, e nunca passou pela minha cabeça o arrependimento de ter participado do movimento de resistência. Já eles se escondem como ratos".
A seguir, confira os principais momentos da entrevista exclusiva concedida pelo escritor Alípio Freire. A íntegra está disponível da versão digital do ContraPonto: http://contrapontoonline.blogspot.com

ContraPonto - Qual a importância da Comissão da Verdade?
Alípio Freire - A primeira e a mais fundamental. Esse é um acontecimento histórico de primeira grandeza. Por quê? Porque as elites brasileiras, desde que chegaram aqui, utilizaram a violência nas realizações dos seus interesses econômicos contra o povo, e sempre foram absolutamente impunes. Hoje, pela primeira vez, com a criação da Comissão da Verdade, o Estado institui um organismo para investigar os desmandos e o terror de Estado da elite brasileira contra os trabalhadores. É fundamental que o povo conheça a sua história, e é por isso que as histórias oficiais não são verdadeiras. A partir dessa experiência saberão quem são seus amigos e seus adversários, e para onde querem levar este país. Eu não quero levar sozinho o país pra canto nenhum, eu quero levar com o nosso povo e com a classe trabalhadora organizada.

ContraPonto - Quais as consequências da impunidade sobre os crimes acontecidos na época da ditadura para a sociedade atual?
Alípio Freire - A punição dos responsáveis pela crueldade na época da ditadura não é ainda a função da Comissão, mas isso não impede que ela possa tomar posse. Tudo vai depender fundamentalmente de sermos capazes de mudar a atual interdependência e reciprocidade de forças na sociedade, e consequentemente, no interior das instituições de Estado. Com a conclusão da Comissão Pastoral da Terra, nos anos de 1999 e 2008, aproximadamente 365 pessoas foram assassinadas no campo. Todos esses crimes permanecem impunes.

ContraPonto - O que o senhor diria sobre os objetivos do golpe de 1964?
Alípio Freire - O golpe ocorreu contra o desenvolvimento de um capital nacional e contra a classe dos trabalhadores e o povo. Quando eu falo o povo, eu falo dos oprimidos e explorados, ou seja, era destruir um projeto de interesse popular. Estavam envolvidos, não apenas as forças armadas, como também políticos, civis e empresas internacionais, especificamente as empresas norte-americanas. As agências de inteligências, como a CIA, o FBI, o Departamento de Estado, Departamento de Defesa e a própria presidência dos EUA. O embaixador norte-americano no Brasil era o senhor Lincoln Gordon, que era do Partido Democrata. Havia o envolvimento do alto quadro da CIA, a central de inteligência dos Estados Unidos. Há vários documentos que comprovam que a proposta dele e dos EUA era, caso houvesse resistência, a ocupação do país.

ContraPonto - O que o levou a participar do movimento de resistência?
Alípio Freire - Eu entrei na Ala Vermelha militando na oposição sindical dos jornalistas, construindo a oposição, participando de uma coisa que quase ninguém conhece e que foi de uma importância imensa, que é o comitê dos artistas, jornalistas e intelectuais em geral, contra a censura e pela a liberdade de expressão e manifestação, que era um comitê super estruturado, inclusive sem direção clara para não ser alvo da repressão, e que funcionava legalmente , mas semi-clandestinamente, em teatros de São Paulo.  Esses comitês foram importantes não só na luta contra a censura, mas na ajuda a outros setores da sociedade contra a ditadura.

ContraPonto - Como as pessoas faziam para se manter na época da ditadura?
Alípio Freire - A partir de 1968 a clandestinidade se intensifica mais, você tem que cuidar dessas pessoas, como conseguir lugares, alimentação, porque elas não podiam trabalhar. Elas poderiam ser presas se fossem encontradas e até mortas ou desaparecidas. Não havia movimentação social no país. Os artistas doavam quadros para rifar, fazer leilão ou bingo e levantávamos dinheiro para sustentar as pessoas.

ContraPonto – Por que o senhor foi preso na época da ditadura?
Alípio Freire - Fui convidado e me dispus a compor o organismo político militar da Ala. O nosso papel não era só fazer expropriação de dinheiro ou equipamento. Nós estudávamos e discutíamos política. Isso durou até 1968. Após o AI-5, isso acabou. Quando eu fui preso eu não estava sozinho, ninguém faz nada sozinho. Eu estava organizando a revista de debate teórico com outras organizações de esquerda e esse projeto nunca caiu. É a primeira vez que falo sobre isso, em relação à organização de esquerda. Eu era responsável por duas áreas: Guarulhos e São Bernardo do Campo. Visitávamos de quatro a cinco vezes por semana, às 4h30 da manhã, na troca do turno dos operários, panfletando nas fábricas. As fábricas davam as listas de quais eram as fábricas onde a organização tinha contatos lá dentro, ou seja, criávamos pautas e conversas sobre a ditadura para organizar os trabalhadores.

ContraPonto - Como foi sua prisão?
Alípio Freire - Em 31 de agosto de 1969 nós tivemos uma prisão na Ala Vermelha.  Acabei sendo preso nessa leva de presos. Fomos levados para a Oban (Operação Bandeirante), que nessa época funcionava no quartel aqui em São Paulo, que é o batalhão de reconhecimento mecanizado da Polícia do Exército, que ficava na rua Tutóia com a Abílio Soares (e que a agora foi demolido), e ali fomos torturados durante seis dias seguidos. Foram torturas brabíssimas. Eu entendo que devemos sempre denunciar a tortura, não só aquelas que nós sofremos, mas as que continuam a existir hoje contra os mais pobres. Os massacres continuam a existir nesse país, nas periferias e também pelo terror do Estado, através das polícias militares.

ContraPonto - Você tinha noção do que poderia acontecer com você?
Alípio Freire - Deixo claro que eu sabia que isso poderia me acontecer. Nenhum de nós era inocente. Bancamos e peitamos os caras. Não é porque sabíamos o que iria acontecer que isso legitima ou diminui o terror do que é a tortura, mas é importante que a gente diga mesmo, até pela nossa dignidade, pra não ficarmos nos vendendo como vítimas inocentes. Sabíamos direitinho o que poderia nos acontecer, mas só assim poderíamos fazer algo pela sociedade trabalhadora, sofredora e oprimida pela ditadura.

ContraPonto - Quanto tempo o senhor ficou preso?
Alípio Freire - Eu fiquei preso por cinco anos. Sofri muito com as torturas.

ContraPonto - Como foi a tortura que o senhor sofreu?
Alípio Freire - No Dops tivemos todos os tipos de tortura possíveis. Éramos castigados e levados presos para o Carandiru. Sofremos castigos absurdos. Nos levaram para o Pavilhão 8, onde existia um corredor das feras, onde havia outros presos comuns e muito perigosos. Nos colocavam junto a eles. Um dia, o coronel Erasmo Dias achou que estávamos em condições muito boas e nos mandou de castigo para Penitenciária do Estado, que foi o pior regime carcerário que a gente pegou, com celas individuais. Você saía da cela uma vez por semana para o banho de sol e banho geral. Geralmente éramos amarrados e espancados em conjuntos de homens com cassetetes e chutes.  Isso era regra. Tinha o famoso pau de arara, em que você era alçado e ficava de cabeça para baixo, com o sexo à mostra. As pernas eram passadas entre os punhos, com uma barra de metal e éramos colocados num cavalete. Eu ficava pendurado e levava choques elétricos. Apanhava em todas as partes do corpo. Eles amarravam o polo de fio elétrico na barra de ferro e passavam por todo o corpo, na região do coração, glande, ouvidos, canto do nariz e faziam afogamento com a cabeça pra cima, quando entrava água nas narinas. Não havia jeito de respirar e com isso gerava o afogamento.  A voltagem dos choques era de 220 volts. Eles giravam as manivelas e o magneto produzia corrente elétrica, quando a sensação era a pior. Existia o trono do dragão, com braços, assento de metal no qual você era amarrado nu, com os braços e pernas presos, e ali o pau cantava de todas as formas. Faziam barbaridades.

ContraPonto - Qual foi a tortura que mais o incomodou?
Alípio Freire - Foi quando eles, os militares, colocavam os pólos dentro dos ouvidos e você sentia a sensação que ia morrer. Os olhos pareciam que giravam na órbita. Essas eram as torturas mais frequentes e que me deixou seqüelas.

ContraPonto - Qual o sentimento pelo os torturadores?
Alípio Freire - Eu encontrei o comandante Fabrício Deltrão e ele comandou todas as torturas contra todos e a minha também. Não tenho nenhum ódio pessoal, é honesto o que eu falo, tanto pra mim quanto para os meus amigos que foram presos junto comigo. O que fica é a exigência da verdade e da justiça. Isso é preciso. O novo Estado constituído tem que fazer justiça. Não tenho o menor sentimento de vingança. Na verdade, eu sinto um certo desprezo, simplesmente, com a clareza que eles têm que ser processados, e os que forem condenados, cumpram pena, com todos os direito a defesa, sem ninguém tocando a mão neles. Só assim a gente constrói um outro país.

ContraPonto - Você acha que os jovens de hoje estão por dentro do que aconteceu no nosso país?
Alípio Freire - Os jovens estão começando a se apropriar da verdadeira história desse país, e essa é uma tarefa nossa, de ajudar esses jovens. Tenho muito contatos com os jovens. Todos se encantam com a internet, com as redes sociais etc. Acho isso importantíssimo, mas não basta. Vocês têm que utilizar essa ferramenta para desenvolver o seu intelecto a respeito do nosso país.

ContraPonto - Valeu apena participar desse movimento?
Alípio Freire - Se valeu apena? Eu sempre respondo isso com a letra de uma música do Gonzaguinha:  “começaria tudo outra vez se preciso fosse, a chama no meu peito ainda arde, nada foi em vão”.